Língua que escorre (2025): arte queer, escaneamento corporal e desejo como vocabulário político

14/07/2025

"Língua que escorre" (2025) é uma série performática de João Cóser que tensiona os limites entre arte queer, corpo e linguagem. A obra parte de escaneamentos corporais como ato artístico e político, utilizando o próprio rosto e letras de macarrão para formar palavras como "carne", "pau", "bunda", "piroca", "desejo". O gesto — ao mesmo tempo íntimo e provocador — transforma o scanner, símbolo de normatização da imagem, em ferramenta de fricção e ruptura.
Ao construir um vocabulário visual com base no corpo dissidente e no desejo queer, João propõe um ritual de linguagem e memória.


Abaixo, compartilho a escrita poética que acompanha o trabalho:

língua que escorre (2025)

às vezes, o corpo tenta dizer — mas a fala falha.
engasga no meio da língua.
em língua que escorre, quem fala é a carne.
é o rosto espremido contra o scanner,
a boca que se abre mais do que deveria,
a imagem que não ilustra — insiste.

a cada gesto performado, algo se rompe:
o corpo atravessa a superfície fria da máquina
como quem se oferece em sacrifício ou testemunho.
entre letras de macarrão — frágeis, quase infantis —
formam-se palavras que resistem:
pau, bunda, piroca, carne, desejo.
palavras que já foram ferida, insulto, e agora são oferenda.

o scanner, aqui, não documenta: deforma.
é um olho sem empatia, que aperta, achata, vigia —
mas é nesse atrito que nasce a imagem.
uma imagem indócil, deslocada da norma,
que revela mais do que mostra.

a série é um ritual de linguagem e presença.
a boca escancarada, a língua exposta,
não buscam sensualidade — buscam escape.
buscam a brecha entre fé e gozo,
entre silêncio e sobrevivência.

este trabalho é parte de uma pesquisa mais funda,
onde o corpo é carne de arquivo,
espelho quebrado, grito enjaulado.
a fé se infiltra como nervura,
e o vermelho pulsa como uma pergunta
que não pode mais ser calada.

porque antes de ser palavra,
o desejo é carne que escorre.